Filhas de Quitéria: as primeiras mulheres combatentes do Exército Brasileiro

Filhas de Quitéria: as primeiras mulheres combatentes do Exército Brasileiro

Em 1822, uma mulher lutava pela manutenção da independência do Brasil. Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a primeira brasileira a integrar uma unidade militar do país – disfarçada de homem e conhecida como soldado Medeiros – já mostrava que as mulheres poderiam atuar na frente de batalha com muita audácia e competência. Após 195 anos da sua integração, as mulheres finalmente podem ser admitidas na linha de ensino militar bélica.

Pela primeira vez, as futuras oficiais combatentes atravessaram os portões da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), no dia 18 de fevereiro. Das 440 vagas disponíveis no concurso de admissão, 40 foram destinadas ao segmento feminino.

Entre as 29.771 pessoas que se inscreveram no maior concurso da escola preparatória, 7.707 eram mulheres. Para elas, a concorrência foi mais acirrada: 193 candidatos por vaga. De acordo com o chefe da Seção de Concurso Tenente Coronel Roberto Paulo Moreira Nunes, a admissão de mulheres e a exposição da mídia contribuíram para o aumento das inscrições. “Houve um interesse maior na carreira e consequentemente o aumento do número de inscritos”, ressalta.

De acordo com o professor de história Coronel Orlando Roque de Simone, este momento histórico faz parte de uma evolução natural que está ocorrendo na sociedade brasileira. “Durante muito tempo as mulheres não tiveram o direito a voto no Brasil, durante muito tempo as mulheres que trabalhavam fora de casa eram mal vistas, tinha um preconceito. De uns tempos pra cá, a mulher vem ganhando bastante espaço dentro da sociedade brasileira, e assim está ocorrendo no Exército Brasileiro”, comenta.

Comandante da EsPCEx Coronel Dutra e a aluna mais nova da turma, Emily Braz, 16, abrem os portões da escola preparatória durante a cerimônia de entrada dos novos alunos

Alunas e alunos da Escola Preparatória de Cadetes do Exército durante a cerimônia de entrada, realizada no dia 18 de fevereiro, em Campinas – São Paulo

Para o comandante da EsPCEx Coronel Gustavo Henrique Dutra de Menezes, comandar a escola neste momento inédito da história do Brasil é muito gratificante. “Quando soube que ano passado seria o ano de concurso da admissão, considerei isso uma oportunidade maravilhosa, um desafio fantástico e encarei como um presente estar aqui neste momento tão importante para a escola e para o Exército”.

Dentro da escola, inúmeras adaptações foram feitas antes mesmo das primeiras mulheres entrarem na instituição – desde a escolha das instrutoras até mudanças na infraestrutura. “A EsPCEx se preparou com muita atenção e muito carinho para receber nossas alunas. Essa preparação não envolve só a parte de infraestrutura, não é só obra. Tem a questão do regulamento e do comportamento. Nós tivemos que adequar algumas normas da escola e tivemos que preparar intelectual e psicologicamente os militares do corpo permanente”, afirma o comandante.

Elas por elas: conheça as instrutoras da primeira turma de mulheres da EsPCEx

Tenente Paola de Carvalho Andrade

Nos bastidores do Exército Brasileiro – enquanto ocorriam diversas adaptações para receber a primeira turma do segmento feminino – grandes mudanças e surpresas ocorreram nas vidas de outras mulheres, militares formadas na Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEx) e que trabalhavam em suas áreas específicas. Sem formação na linha bélica, este foi o destino da jornalista Tenente Paola de Carvalho Andrade e da enfermeira Tenente Thaynan Miranda Amorim, que se tornaram instrutoras da Escola Preparatória de Cadetes do Exército.

O curso de formação de oficiais da linha de ensino militar bélica realizado em cinco anos – 1 ano na escola preparatória e os quatros anos seguintes na Academia Militar das Agulhas Negras – prepara o indivíduo para comandar e instruir pelotões e companhias. No entanto, com apenas nove meses de formação na escola complementar, as tenentes abraçaram a causa e foram à EsPCEx, cientes dos inúmeros desafios que iriam enfrentar, com o objetivo de serem as instrutoras da primeira turma de mulheres.

Quando soube que tinha sido nomeada, Paola estava no Haiti, trabalhando em uma missão de paz. “Eu estava no Haiti quando o comandante da guarda me chamou e me contou que eu tinha sido nomeada. Para mim foi uma surpresa, porque eu não tinha nenhum plano, eu não sabia”, recorda.

A surpresa também tomou conta de Thaynan, que logo se empolgou com a ideia de ser instrutora. “Eu me formei em 2014 e em 2015 eu estava no Hospital Militar de Campo Grande. Em novembro de 2015, eu recebi a notícia de forma bem inesperada. Eu estava assumindo o plantão e o meu ex-comandante de companhia estava me parabenizando no facebook pela minha nomeação. A princípio eu me assustei, de repente minha vida mudou da água para o vinho. Eu ia sair da minha função para exercer uma função diferente, e teria que começar do zero”, comenta.

As tenentes também passaram por treinamentos e aprenderam como se dá a formação na linha combatente. Instruídas pelos próprios comandantes de companhia e de pelotão, as oficiais do quadro complementar aos poucos foram construindo a própria identidade militar.

Para Paola, elas também foram alunas neste processo de adaptação. “Algumas coisas nós já tínhamos feito e refizemos, mas não foi um ano fácil. Nós dizemos que também foi um ano de aluna. Eu estava acostumada com a vida de jornalista, hoje tenho uma vida de militar. Eu tenho horários diferenciados iguais a uma tropa de escola – isso é mais cansativo. Me deram missões que eu achava que não teria que passar por elas, como marchar, carregar peso, carregar fuzil, porque eles queriam ver se a gente conseguia – testar na gente para ver o que as alunas conseguiriam”, comenta.

“No começo tentei observar muito para poder criar esta minha identidade como instrutora. A rotina é bem pesada, porque ela tira você da zona de conforto e coloca numa zona quente, para poder evoluir essa pessoa o mais rápido possível”, diz Thaynan, realizada com a missão que recebeu.

Tenente Thaynan Miranda Amorim

Emocionada, a enfermeira se sente grata por contribuir com a formação dos futuros oficiais do Exército Brasileiro. “Hoje eu sei ser mais militar do que enfermeira. É muito bom cuidar das pessoas, mas eu consigo aplicar um pouco disso aqui. O mais legal dessa profissão é conseguir ver a evolução que eles têm ao longo do ano. Eles chegam completamente perdidos, nunca saíram de casa e talvez nunca tenham lavado uma roupa. Eles entram meninos e saem homens, porque a evolução é muito grande. Acompanhar o amadurecimento e a evolução deles, e sentir que de alguma forma você faz parte disso é muito gratificante, é um sentimento inexplicável. Tanto que na formatura no final de 2016, com a saída da minha primeira turma, foi difícil conter a emoção porque a gente ensina, mas também aprende muito”.

A importância do exemplo e de fazer um trabalho em que as alunas realmente acreditem é fundamental para Thaynan. “Elas precisam ter esse discernimento, saber que o preço do pioneirismo é esse, são elas que vão ter que ganhar espaço para as outras conseguirem chegar, até que todo mundo esteja devidamente à vontade dentro da posição que ocupa”.

Para o futuro, as expectativas são muito positivas. Transformadas e amadurecidas, as tenentes enxergam este momento como uma grande conquista para as mulheres – cientes de que a união entre elas pode fazer a força. “As alunas tem ciência disso. Uma das alunas que entrou agora disse que tem uma obrigação de fazer o curso e de deixar a porta aberta para as seguintes, pois essa é uma oportunidade que muitas queriam ter e não tiveram. A mulher no Exército é uma coisa que não é comum, e o Exército está aprendendo a lidar com isso. Têm mulheres no Exército, eu estou aqui e tem outras colegas, mas na função que era especifica do homem não tinha, então é uma adaptação a um meio que é totalmente masculino. Certamente a gente vai mudar muita coisa só com a nossa presença e isso causa certo incomodo. Para você mudar uma cultura causa um certo incomodo, mas o que vemos aqui é a boa vontade, todo mundo está na boa vontade de recebê-las e de formá-las”, reforça Paola.

Apesar de estarem em um ambiente majoritariamente masculino, Thaynan acredita que a entrada das mulheres fará com que elas ganhem mais espaço no Exército Brasileiro. “Eu gostaria de fazer isso por mais tempo e de ver várias turmas se formando. Eu sei que daqui pra frente, até o nível de profissionalismo e intelectual tende a subir, porque elas vão fazer isso. Elas entendem do que são capazes e continuam brigando por um espaço. Eu sei que vamos chegar muito longe – talvez eu não esteja viva para ver, mas uma dessas aqui talvez seja general no futuro, será aquela que pode mudar alguma coisa. Essa experiência foi algo que me modificou muito”.

Presente em todas as áreas de formação do Exército, as mulheres agora poderão alcançar o generalato – e daqui um tempo, as primeiras oficiais combatentes comandarão os diversos batalhões do Brasil.

Alunas comemorando durante a cerimônia de entrada dos novos alunos da Escola Preparatória, realizada no dia 18 de fevereiro

3 comentários

  1. Alle disse:

    Tive o prazer de estar na EsPCEx no último dia 18. Pude me emocionar com cada momento, meu sobrinho faz parte do corpo de alunos e ver o primeiro grupo de mulheres entrando por aqueles portões foi algo emocionante. Parabéns a todas.

  2. Paulo Renato disse:

    Parabéns as Tenentes Paola e Thaynan, a arte de comandar não é fácil, mas com certeza as senhoras tem capacidade de sobra para essa mais nobre missão que lhes foram conferido.
    Sucesso ao novo desafio! BRASIL ACIMA DE TUDO

  3. Pedro Castello Branco SCERNI disse:

    Acabamos com preconceito,
    Inúteis e desnecessários, apenas destruidores e ignorantes. Mulher e homens são iguais. As FA , dão mais um exemplo de superioridade . Soldados sempre aguardaram com braços abertos as mulheres guerreiras. Honra em ombrear.- nossas AMAZONAS

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